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sexta-feira, 18 de abril de 2008

Joshua Bell. A arte fora de contexto.

Hoje o programa vai abordar os contextos.
O que é, pode ou deve estar em "contexto".
Quem se põe em contexto e quem define os contextos.
Passo a explicar:

Numa iniciativa do jornal Washington Post, Joshua Bell, um dos mais famosos violinistas do mundo tocou incógnito, com o seu Stradivarius de 1713 avaliado em 3,5 milhões de dólares, durante 45 minutos na estação L`Enfant Plaza no centro de Washington entre as 07.15 e as 8 da manhã.

Três dias antes, Bell tinha tocado no Symphony Hall em Boston, onde os lugares custam mais de cem dólares, mas na estação de Metro foi praticamente ignorado pela esmagadora maioria das 1.097 pessoas que passaram à sua frente durante esse período de tempo.
No Symphony Hall estava em contexto.
No Metro não...
No Metro practicamente ninguém lhe ligou.
A excepção foram as crianças, que, inevitavelmente, e perante a oposição do pai ou da mãe, queriam parar para escutar Bell, algo que, diz o jornal, pode indicar que todos nascemos com poesia e esta é depois, lentamente, sufocada dentro de nós...

A roupa.

Joshua, vestido de jeans e t-shirt branca e com boné de um clube de basebol local, começou por interpretar "Chaconne", de Johann Sebastian Bach, que é, na sua opinião, "não só uma das maiores peças musicais jamais compostas, mas também um dos grandes sucessos de qualquer homem na história".

Este facto, obviamente, não impressionou os utentes do Metro, só passados 3 minutos e meio é que alguém decidiu recompensar o violinista deitando um dólar na caixa do violino. E só passados 6 minutos, alguém parou para escutar Joshua Bell.
"Foi uma sensação muito estranha aperceber-me de que as pessoas me estavam a ignorar", disse Bell, habituado a ouvir palmas dos amantes da música.

"Num concerto eu fico irritado se alguém tosse ou se um telemóvel toca. Mas na estação de Metro as minhas expectativas rapidamente diminuíram. Comecei a ficar agradecido pelo mínimo dos reconhecimentos, mesmo um simples olhar. E fiquei muito agradecido quando alguém punha um dólar na caixa e não apenas alguns trocos”.

Os resultados surpreenderam também o director nacional da Orquestra Sinfónica Nacional, Leonard Slatkin, que declarou ao jornal esperar que, em cada mil utentes, "35 ou 40 reconhecessem a qualidade e entre 75 e 100 parassem para escutar".

O próprio Washington Post tinha adoptado medidas para o caso de a presença de Joshua Bell provocar uma acumulação de transeuntes e "engarrafamentos" na estação de Metro, preocupações que provaram ser totalmente escusadas.

Para Bell, o pior foi quando acabou de tocar "Chaconne" e "nada aconteceu".
"As pessoas, que não notaram que eu estava a tocar, também não notaram que eu tinha acabado", disse Bell, que, como prodígio do violino, está habituado desde muito jovem a enormes aplausos.

Depois de "Chaconne", Joshua Bell tocou "Ave Maria", de Franz Schubert, e "Estrellita", de Manuel Ponce, e a indiferença foi quase total.
Apenas 7 pessoas pararam por alguns, poucos, minutos para o escutar.

Mas o "herói cultural" da experiência do Washington Post foi John Picarello, um inspector dos Correios que se dirigiu para o músico quando este começou a tocar "Chaconne".
Picarello escutou Bell durante 9 minutos e disse ao jornal ter notado imediatamente tratar-se de "um violinista soberbo".

"Nunca ouvi ninguém deste calibre, tecnicamente muito bom e com um violino com excelente som", descreveu Picarello, que se mostrou "espantado" pelo facto de a música de Bell não estar "a interessar a ninguém".

O inspector dos Correios deu cinco dólares a Joshua Bell sem saber de quem se tratava.

Foi quase já no fim do "concerto de metro" que alguém finalmente reconheceu o violinista.
Stacy Furukawa, uma funcionária no Departamento do Comércio, tinha, três semanas antes, ido a um concerto de Bell na biblioteca do Congresso e não pôde acreditar no que estava a ouvir na estação de Metro.

"Joshua Bell a tocar à hora de ponta e as pessoas passam, não olham e alguns atiram moedas de 25 cêntimos para dentro da caixa do violino.
25 cêntimos!
Que tipo de cidade é esta em que isto pode acontecer?", disse Stacy ao jornal.

O sucedido motiva o debate:
A presença de Bell no Metro foi um caso de "lançar pérolas a porcos"?
É a beleza um facto objectivo que se pode medir ou apenas uma opinião?
Mark Leitahuse, um dos directores da Galeria Nacional de Arte, afirmou ao jornal não estar surpreendido, porque a arte tem de estar "em contexto".
Ou seja, pode-se tirar de um museu uma pintura famosa no valor de cinco milhões de dólares, levá-la para um restaurante e "ninguém notará".
Mesmo um especialista poderá apenas observar que se trata de uma boa cópia e continuar a comer.

Tudo é, portanto, uma questão de contexto".

Para outros, como o escritor John Lane, a experiência é um indicativo da "perda da capacidade de se apreciar a beleza".

O escritor disse ao Washington Post que o que aconteceu não significa que "as pessoas não tenham a capacidade de compreender a beleza, mas sim que ela deixou de ser relevante para elas".

Bell assinalou ao jornal ter recebido dos utentes do Metro um total de 32,17 dólares pelos 43 minutos que tocou.
Não foi "muito mau", considerou...

"Isto dá 40 dólares à hora, pelo que penso que poderia viver sem ter de pagar a um agente", ironizou.

Joshua Bell recebeu o prémio de melhor músico clássico dos Estados Unidos. Pelo que não há dúvidas de que alguém reconhece o seu valor e a beleza da sua música ainda que em contexto...
E nós?
Quantas vezes não apreciamos tantas coisas apenas porque não estão em contexto?
A arte em sítios próprios é mais arte?
Então porque motivo tantos fazem questão de frequentar cerimónias, lançamentos, concertos e inaugurações de exposições se maior parte das vezes abrem e fecham o livro só pelo autógrafo, vai-se ao concerto para marcar presença, e nas exposições fica-se de costas para os quadros?
Que sociedade é esta que faz das "Artes" e da "Cultura" um instrumento pessoal e descartável de vaidade?
Não se apercebem os músicos, escritores, fotógrafos e pintores que maior parte do seu público ali está só e apenas para ver e ser visto?
A hipocrisia nas Artes e Cultura é recíproca; uma não vive sem a outra?
O que define a qualidade de uma "obra"? o seu preço, a sua diferença ou o estatuto pre-adquirido de quem a concebeu?
Onde andam os "verdadeiros artistas"?
Xana.

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